domingo, 30 de setembro de 2012

Da arte de beber literatura (teses)


I


Assim como a bebida que vicia, a literatura também torna o homem alcoólico; quase sempre, os que possuem cultura de subúrbio, começam nas bebidas geladas, sobretudo, cerveja e chopp, após certo período a ânsia literária já não se satisfaz com leituras geladas que são típicas de quem começa a conhecer a literatura. Do chopp e cerveja migra-se para bebidas quentes, ora whisky, não os de boa qualidade, ora vodka, sobretudo as nacionais, ora a cachaça. Aqui reside o paradoxo, à medida que a inconstância da literatura cresce em nosso peito vamos mergulhando em leituras mais “pesadas”, mais fortes, complexas e perturbadoras no espírito humano, porém não é culpa dela, a culpa é do homem, do seu espírito conhecedor, aqueles que rompem com a ignorância se afogam neste mundo de bebidas literárias. Por outro lado esse mergulho é também um fracasso, a cada passo que dá para a literatura são dois passos para a solidão, medida descomunal. Vamos nos tornando alcoólicos, a cerveja do subúrbio já não serve mais, parte para o whisky ruim, e já se prova outro gosto, acalma o espírito ao mesmo tempo que o corrompe para vôos maiores; a vodka vem, o whisky de boa qualidade também, parece que enxergou a divisa do espírito, breve engano que a literatura nos proporciona, daí em diante experimentamos o paradoxo do vôo alcançado e a dependência; a cachaça será o fim, é quando não suportando e não compreendendo o aparente transcendental, encontra na cachaça o devido silêncio da solidão que a literatura proporciona. 


II

A Literatura no nosso tempo tem sido encarada como ferramenta que não segue mais grupos, livre de técnica, “normas”. Mas ao passo que esses grupos foram sendo sucumbidos surgiram outros, só a técnica que parece  ter morrido. Portanto, permanece a hegemonia que se volta, não mais para quem escreve ou publica, mas para quem tem “vaga”. Por acaso há vagas nos botequins reservadas para os eleitos? O botequim é de todos, mas é preciso saber beber. A bebida tem sua forma, sua propriedade, onde reside seu conceito de bebida, de lá extraímos a aparente transcendência; nem mesmo a literatura transcende, ela é cria e pai do mundo, e é aí que mora a falsa transcendência porque dela é impossível surgir o novo, para tal acontecimento é preciso que o novo surja de algo nunca visto antes. Ela é atravessada pela história, daí tudo o que ela faz é no nível do mundo.

III

O que prejudica os nossos literatos não é a cachaça. É a burrice.
Lima Barreto


Beber em demasia é um mal, vicia o homem e o mata, prudente seria não beber, mas aquele que experimenta o breve instante da luz divina a deseja compulsivamente até a morte. Ela também pode desviá-lo para as trevas, sobretudo quando nela busca o alívio do seu tempo; aqueles que buscam a verdade a encontram pelo conhecimento, assim é a literatura também.

IV

Cachaça boa é cachaça velha, quanto mais velha for, melhor fica; aqueles que sabem apreciar uma boa bebida sabem do que falo. Mas cachaça nova também é boa, entretanto, para degustá-la não é preciso, necessariamente, ter provado as bebidas antigas, porém ela só será uma boa cachaça se tiver na sua composição a devida quantidade de reconhecimento às bebidas antigas que sempre dividirão espaço no bar com as novas. Bem que a literatura do Agora poderia ser encarada assim, como uma cachaça nova.


V

Toda cachaça requer ser envelhecida para ganhar o padrão de “boa”. Toda cachaça só é boa porque é velha. Toda cachaça velha é nova também, e toda cachaça nova é velha, mas não será boa se for apenas velha, é preciso ser muito mais que velha, é preciso superar a velha cachaça no tempo. Assim é a boa literatura, ela não pode negar o passado, sua relação com ele não é de herança, e sim de justiça, ser no presente o que não foi no passado, mas para isto é preciso ser tudo o que foi no passado e então se superar fazendo justiça com aquilo que não foi.


VI

Curió, meu filho, tá uma porcaria, mas poesia ruim é melhor que bosta nenhuma. 
Quincas Berro d'Água

Há cachaça ruim? Sim, há. Quem já bebeu uma cachaça doce, gostosa, na medida certa do álcool, sem colocar ou tirar, sente a diferença quando bebe uma de má qualidade, mas nem por isso deixa de ser cachaça. Aliás, melhor uma cachaça ruim que nada. O mesmo vale para literatura; questão de gosto, questão de ter alguma coisa que coisa nenhuma. 

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