sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Homem Santo


A minha janela não tem vista nem pra morro, nem praia, acho que fico entre dois mundos, o que é pior, pois se não sou explorado, não sou explorador, não sou nada dessa janela aqui. Mas essa janela é minha vida, minha prisão e liberdade. O tempo aqui perde sua característica convencional, casual, linear de ser. Tempo aqui é simplesmente tempo, e só. Não me preocupo com a noção de sucessão no tempo, coisa vital para muitos, para mim é ao contrário, necessário é não ter tempo, só ato. O instante, momento, ato, segundo, como queiram, é o que sou; não relógios, marcadores, datas, aniversários. Com isto não nego o tempo, pois ele se faz a cada ato na minha pele, mas repudio a linearidade, pois não é ela que faz minha pele enrugada, cabelos brancos, cansaço físico, antes é uma causa de átomos que vão se transfigurando, não há nesse processo algo que no momento, um determinado momento, fosse deflagrado numa corrida linear determinada pelo tempo que culminaria na minha morte. Não me alongarei em palavras sobre o tempo, já ficou claro, creio, o que penso do tempo, sendo assim o eu não é propriamente meu, mas sou eu atravessado por diversos eu’s, há nisso por acaso linearidade?
Essa janela, como já salientei, é minha prisão e liberdade, pois dela estou certo que resgato o passado no presente e faço o futuro precursor do presente, e sei bem que isto é um meio de me livrar dessa janela. Mas chega de devaneios atemporais e temporais, já cansei demais você. Escrevo-te meu amigo para desabafar o que sucedeu por aqui, não tenho intenção de citar nomes, pois nem mesmo adiantaria já que você não conhece, nem pretendo ser longo e explicar-lhe detalhes, detalhes matam a literatura, tira o brilho do leitor em completar as lacunas deixadas. Sei que você completará muito bem os espaços deixados aqui; situar no tempo também não importa, é fato comum, do dia, que acontece com qualquer pessoa e em qualquer lugar. Na verdade não pretendo nada com esse texto, o leitor faz o que quiser com ele, isso é problema dele.
Tinha pouco mais de 27 anos, sem dinheiro, sem emprego, sem as certezas do mundo, sem as certezas de mim, sem saber mais se era capaz, sem saber se entendia mesmo do que falava, sem saber. Esse era eu no presente, nada diferente dos muitos que por aí vagueiam, mas era eu, e isso me assustava. Assim, o leitor dos romances contemporâneos até pensará que hoje está tudo diferente, melhor, que tenho dinheiro, emprego, sou intelectual convicto, conhecido... sinto muito meu caro, mas continua a mesma situação, só eu que mudei e mudo. E como mudo, de tanto mudo eu silenciei, fiquei mudo. Mas irei contar o amigo o que sucedeu.
Na tenra idade, eu que achava tudo podia (e podia), me enveredei pela política. O amigo bem sabe que nunca fui dado a essas coisas, na faculdade havia dois grandes grupos, oposição e governo, direita e esquerda, centro-esquerda e centro-direita e essas nomenclaturas que você conhece muito bem. Pois então, mesmo sendo avesso a isso de política me candidatei a vereador de uma cidade no interior, motivo é que tava na pindaíba e esse era o dinheiro mais fácil, e mais rápido e mais honesto. Era conhecido na cidade como O Professor, me servi disso e fui eleito. Não me servi muito do dinheiro público, só o necessário, mas o mau é que de necessidade em necessidade a gente vai se servindo e desagradando também. Armaram pra mim e fui pego e me afastei. Voltei a minha vida de professor e a da pindaíba também, passado uma eleição me deram uma nova proposta, essa agora de ordem religiosa, uma missão divina. Nunca fui dado com religiões e igrejas, mas como dizem que a necessidade faz o homem eu me tornei um homem santo. Passei a frequentar os cultos, inicialmente ia nos sábados à noite e domingo pela manhã, logo entrei num grupo e passei a me dedicar três dias por semana, em seguida já estava inserido na igreja como O Irmão. Até que me disseram que deveria continuar minha missão divina, ser uma voz do Senhor na política ( claro que ninguém ali tava preocupado com isso, as preocupações eram financeiras, pastor queria isenção fiscal). E voltei, com o apoio da igreja, ( se quiser ser político, entre pra igreja meu amigo) a ser vereador. Em dois anos de mandato eu aboli os impostos da igreja e de empresas ligadas a ela, construí mais duas com dinheiro público, aumentei minhas necessidades e inaugurei uma praça pública. Ninguém pode negar que não fui um bom político. Mas em política é sempre bom ficar de olhos abertos. Quando se tem uma missão divina duas coisas não se pode fazer: beber em bares e frequentar puteiros. Pequei nos dois, fui expulso da igreja e perdi o mandato por questão de decoro. Quem estava comigo na farra era o pastor e o prefeito, ambos não podiam se queimar, e eu fui o crucificado, me tiraram do time. Hoje são deputados estaduais e a igreja é líder no Estado, bem como é líder na isenção de impostos. Ontem pela manhã recebi aqui em casa um bilhete assinado por ambos:
“Velho amigo, sabendo das suas dificuldades e de como a vida política lhe fora cruel, estamos solicitando sua presença em nossa corrida por uma vaga no Senado Federal. Junte-se a nós, precisamos de você, de um assessor em nossa luta. Venha nos visitar na capital em nosso escritório.
PS: Em Brasília poderemos fazer nossas farras, dizem que lá imprensa e senadores jogam no mesmo time.”

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