sábado, 21 de julho de 2012

Carta


Caro Archidy,*

Com as novas tecnologias vem junto uma discussão, que não é nova, sobre o que é literatura e sua morte; isso chega até nós como se livro fosse sinônimo de literatura, coisa que não é. O livro é um suporte que pertence mais à história que propriamente à literatura, portanto ela não morrerá, só mudará de suporte, assim como mudou do pergaminho para os livros. Mas a pergunta fica: o que é literatura? Claro que não tenho pretensão de responder isso, se um dia me enveredar por tal caminho não será para dizer o que ela é, mas, antes, deixar mais dúvidas. O motivo de começar este texto tomando essa questão é para tentar entender por qual motivo a escrita fantástica no Brasil ainda é vista como escrita menor, ideia pueril. Não sou um leitor perspicaz da nossa literatura contemporânea, tenho essa falta comigo, mas sinto que há cada vez mais divisões na literatura, divisões essas que atendem a certos grupos dentro e fora da Academia que tomam para si a bandeira de “intelectuais”. O que quero dizer com isso meu caro é que a literatura dita fantástica, regional, tradicional trabalha com a mesma coisa, o texto. Sendo assim não há diferença entre uma categoria e outra, uma não pode ser menor ou maior que a outra, pois todas lidam com o texto, o que as diferencia, e não é caso de categoria, é o trabalho com o texto. Acrescente a isso que a boa literatura é regional, tradicional, contemporânea e fantástica a um só tempo, não tomo o fantástico somente como algo “irreal”, mas como fruto do imaginário, pois, afinal toda escrita é imaginação, é a ficção que já avisa que é ficcional, é o elemento que nos eleva a outros e a nós mesmos. Portanto, toda escrita é, no seu íntimo, fantástica.
O subtítulo “a história que Pero Vaz de Caminha não contou” atrai muito mais o leitor que propriamente o título, e é fácil dizer o motivo: qual leitor não gostaria de saber o que Pero Vaz de Caminha não relatou ao rei de Portugal sobre nossa terra? Essa mistura entre o histórico e o ficcional será um recurso ao longo do texto que prende o leitor e o dará imaginação, assim como o subtítulo justifica o narrador que promete contar algo, um mistério, e não conta. O primeiro capítulo, penso eu, é onde o narrador mais faz reiterações sobre o mistério a contar e depois quebra trazendo fatos conexos numa espécie de construção histórica das reminiscências do narrador, autor da carta. Confesso que achei cansativo as diversas reiterações, mas ajuda o leitor a passar para o próximo capítulo, bem como elas aproximam o narrador do leitor quando, de forma irônica, aquele reconhece as repetições e prever as críticas dos literatos.
É a partir do segundo capítulo que se nota um trabalho mais apurado com questões do espírito em torno do tema fantástico. Portanto o primeiro capítulo funciona, de fato, como preparação e seleção dos leitores. No tratar de questões do espírito destaco o narrador, que na transcrição do ocorrido, vai questionando o que seria fantástico, irreal e confronta isso com a ideia de “Deus fantástico”. Este deus fantástico, que é o deus religioso, é real para grupos religiosos, mas é inadmissível, por esse mesmo grupo, a ideia de um fantástico que não seja religioso. Essa questão me fez lembrar uma discussão recente que travei com uma amiga sobre a ficção: somos ficção tentando ser real, e a literatura, como diria um professor meu, “é a mais honesta das ficções, pois logo de cara diz que é ficção.” Com isto meu caro não me tome como um homem de causa ateísta, não. Ao contrário, o que se discute aqui é a ideia de deus fantástico, ideia essa, que para o homem moderno, faz tanto sentido quanto uma história permeada do fantástico. Numa coisa a filósofa de extrema esquerda Marilena Chauí tem razão, “o ateu é aquele que não acredita no nosso deus”.
Esse ponto sobre sermos ficção rende bastantes páginas a partir de sua obra, mas quero deixar para outro momento. Agora gostaria de ressaltar mais um ponto que são as notas de rodapé, coisa não muito comum em romances, o que me vem de memória neste momento é somente Iracema, perdão se não lembro outra mais recente.
As notas, num primeiro momento, tem a impressão de educar os leitores, é um recurso até didático onde se presume que os leitores sejam crianças e adolescentes e por este motivo seja necessário uma explicação de certas personagens históricas que porventura não sejam do conhecimento do referido público. Entretanto, as notas também são parte do romance. Apesar de poucas, demonstram a necessidade que o autor, não o narrador, pois as notas não são dele, tem de cercar seu texto de verossímil, as notas, me parecem, estão aí também nessa função secundária: atestar a verossimilhança da carta.
São breves apontamentos meu caro sem intenção de normatizar, pois a obra sempre se encontra aberta. Gostei do seu texto “Eu, Papai e a Literatura”, gostei da discussão que você traz sobre a Arte, o que ela é. Quando estive na Paraíba toquei nesse ponto quando tratei Augusto dos Anjos: “Sendo assim para entender arte ou o que é arte não é preciso ser um intelectual; se um homem simples do sertão compreende o mundo a partir do seu lugar ele sabe o que é arte, se ele parte do pessoal ao universal ouvindo, por exemplo, notas musicais e ritmo no chocalho do gado no pasto ele sabe o que é arte, este homem simples se elevou sem precisar de nenhum conhecimento técnico de música.” Essa temática venho perseguindo com Lima Barreto em meus estudos sobre o autor carioca, espero também discutirmos mais sobre esse assunto.

Abraço.
Rio de Janeiro, 22/06/12.
Chico Arruda.

*
Correspondência enviada ao escritor Archidy Picado Filho. São apontamentos sobre o seu livro Os Cães do Diabo que o escritor me entregara quando estive em João Pessoa/PB. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quer mais?