Caro Archidy,*
Com as novas
tecnologias vem junto uma discussão, que não é nova, sobre o que é literatura e
sua morte; isso chega até nós como se livro fosse sinônimo de literatura, coisa
que não é. O livro é um suporte que pertence mais à história que propriamente à
literatura, portanto ela não morrerá, só mudará de suporte, assim como mudou do
pergaminho para os livros. Mas a pergunta fica: o que é literatura? Claro que
não tenho pretensão de responder isso, se um dia me enveredar por tal caminho
não será para dizer o que ela é, mas, antes, deixar mais dúvidas. O motivo de
começar este texto tomando essa questão é para tentar entender por qual motivo
a escrita fantástica no Brasil ainda é vista como escrita menor, ideia pueril. Não
sou um leitor perspicaz da nossa literatura contemporânea, tenho essa falta
comigo, mas sinto que há cada vez mais divisões na literatura, divisões essas
que atendem a certos grupos dentro e fora da Academia que tomam para si a
bandeira de “intelectuais”. O que quero dizer com isso meu caro é que a
literatura dita fantástica, regional, tradicional trabalha com a mesma coisa, o
texto. Sendo assim não há diferença entre uma categoria e outra, uma não pode
ser menor ou maior que a outra, pois todas lidam com o texto, o que as diferencia,
e não é caso de categoria, é o trabalho com o texto. Acrescente a isso que a
boa literatura é regional, tradicional, contemporânea e fantástica a um só
tempo, não tomo o fantástico somente como algo “irreal”, mas como fruto do
imaginário, pois, afinal toda escrita é imaginação, é a ficção que já avisa que
é ficcional, é o elemento que nos eleva a outros e a nós mesmos. Portanto, toda
escrita é, no seu íntimo, fantástica.
O subtítulo “a história
que Pero Vaz de Caminha não contou” atrai muito mais o leitor que propriamente
o título, e é fácil dizer o motivo: qual leitor não gostaria de saber o que
Pero Vaz de Caminha não relatou ao rei de Portugal sobre nossa terra? Essa
mistura entre o histórico e o ficcional será um recurso ao longo do texto que
prende o leitor e o dará imaginação, assim como o subtítulo justifica o
narrador que promete contar algo, um mistério, e não conta. O primeiro
capítulo, penso eu, é onde o narrador mais faz reiterações sobre o mistério a
contar e depois quebra trazendo fatos conexos numa espécie de construção
histórica das reminiscências do narrador, autor da carta. Confesso que achei
cansativo as diversas reiterações, mas ajuda o leitor a passar para o próximo
capítulo, bem como elas aproximam o narrador do leitor quando, de forma
irônica, aquele reconhece as repetições e prever as críticas dos literatos.
É a partir do segundo
capítulo que se nota um trabalho mais apurado com questões do espírito em torno
do tema fantástico. Portanto o primeiro capítulo funciona, de fato, como
preparação e seleção dos leitores. No tratar de questões do espírito destaco o
narrador, que na transcrição do ocorrido, vai questionando o que seria
fantástico, irreal e confronta isso com a ideia de “Deus fantástico”. Este deus
fantástico, que é o deus religioso, é real para grupos religiosos, mas é
inadmissível, por esse mesmo grupo, a ideia de um fantástico que não seja
religioso. Essa questão me fez lembrar uma discussão recente que travei com uma
amiga sobre a ficção: somos ficção tentando ser real, e a literatura, como
diria um professor meu, “é a mais honesta das ficções, pois logo de cara diz
que é ficção.” Com isto meu caro não me tome como um homem de causa ateísta,
não. Ao contrário, o que se discute aqui é a ideia de deus fantástico, ideia
essa, que para o homem moderno, faz tanto sentido quanto uma história permeada
do fantástico. Numa coisa a filósofa de extrema esquerda Marilena Chauí tem
razão, “o ateu é aquele que não acredita no nosso
deus”.
Esse ponto sobre sermos
ficção rende bastantes páginas a partir de sua obra, mas quero deixar para
outro momento. Agora gostaria de ressaltar mais um ponto que são as notas de
rodapé, coisa não muito comum em romances, o que me vem de memória neste momento
é somente Iracema, perdão se não lembro
outra mais recente.
As notas, num primeiro
momento, tem a impressão de educar os leitores, é um recurso até didático onde
se presume que os leitores sejam crianças e adolescentes e por este motivo seja
necessário uma explicação de certas personagens históricas que porventura não
sejam do conhecimento do referido público. Entretanto, as notas também são
parte do romance. Apesar de poucas, demonstram a necessidade que o autor, não o
narrador, pois as notas não são dele, tem de cercar seu texto de verossímil, as
notas, me parecem, estão aí também nessa função secundária: atestar a
verossimilhança da carta.
São breves apontamentos
meu caro sem intenção de normatizar, pois a obra sempre se encontra aberta. Gostei
do seu texto “Eu, Papai e a Literatura”, gostei da discussão que você traz
sobre a Arte, o que ela é. Quando estive na Paraíba toquei nesse ponto quando
tratei Augusto dos Anjos: “Sendo assim para entender arte ou o que é arte não é
preciso ser um intelectual; se um homem simples do sertão compreende o mundo a
partir do seu lugar ele sabe o que é arte, se ele parte do pessoal ao universal
ouvindo, por exemplo, notas musicais e ritmo no chocalho do gado no pasto ele
sabe o que é arte, este homem simples se elevou sem precisar de nenhum
conhecimento técnico de música.” Essa temática venho perseguindo com Lima
Barreto em meus estudos sobre o autor carioca, espero também discutirmos mais
sobre esse assunto.
Abraço.
Rio de Janeiro,
22/06/12.
Chico Arruda.
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