O que torna determinado momento único? O que dá beleza ao efêmero? A poesia nos diz que o fim das coisas, a impossibilidade de vivê-las mais uma vez é o que lhes confere importância. Para Nietzsche, entretanto, a vida é um eterno devir ou, mais precisamente, um eterno retorno. Nada é vivido uma única vez, tudo tende a ser infinitamente repetido. Este é o conceito com o qual Milan Kundera nos apresenta ao universo de sua obra.
Enquanto divaga sobre Nietzsche e a eterna repetição de vivências, o autor também traz à discussão Parmênides, que nos apresenta a idéia de um mundo baseado na existência de dois pólos opostos, o negativo e o positivo, que conferem significado um ao outro. Tomando como base a contradição defendida pelo filósofo, peso e leveza seriam, respectivamente, negativo e positivo? Então o que escolher, o peso ou o não-peso? Eis o grande questionamento do homem, eis seu grande fardo: ser livre para escolher.
Vê-se desde o primeiro capítulo que Tomas, Tereza, Sabina e Franz são “apenas” pano de fundo para um ensaio filosófico, entretanto, caro leitor, não tome a expressão utilizada entre aspas como pejorativa. Os personagens são também os próprios conceitos, tais como os seres de carne e osso.
Tomas é um bem sucedido médico cuja vida sempre fora regida pela leveza de não ser inteiramente de uma única mulher, até o dia em que conhece Tereza, uma jovem – e por jovem não entenda cheia de vida - sempre às voltas com questões inevitáveis, ainda que quase sempre ignoradas pelos demais seres pensantes, tais como a dualidade existente entre corpo e alma; não suporta a idéia de possuir intestinos e, ao mesmo tempo, ser capaz se ver enquanto essência, de ser sagrada enquanto ser humano.
Sabina, mulher excêntrica e amante de Tomas, poderia ser, juntamente com este, a personificação da insustentável leveza. Sente uma necessidade frenética de abandonar, vive numa fuga constante, somente balanceada pelo peso de Franz, um professor universitário casado com quem mantém um relacionamento. Entre Franz e Sabina, porém, há uma constante de mal entendidos e uma disparidade gritante no modo de enxergar mesmo as coisas mais simples, motivo pelo qual o autor cria o ‘pequeno léxico de palavras incompreendidas’, oferecendo-nos um vislumbre do mundo sob a perspectiva de cada um individualmente.
Ambientados numa realidade política opressiva – a invasão da Tchecoslováquia pelo exército russo, em 1968 -, cada personagem encerra em si as inúmeras possibilidades do espírito humano. Neles estão todas as palavras mal interpretadas, todas as ações inúteis, tudo o que poderia ter sido e não foi, e tudo o que chegou a ser.
Outro tema abordado é a negação da individualidade, materializada no kitsch. Nessa realidade, palavras e imagens são projetadas e enraizadas na mente de cada indivíduo, forçando-o, de certa forma, a seguir o ideal estético de determinado regime/sistema:
“Esta é uma palavra alemã [kitsch] que apareceu em meados do sentimental século XIX e que, em seguida, espalhou- se por todas as línguas. O uso repetido da palavra fez com que se apagasse seu sentido metafísico original: em essência, o kitsch é a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal quanto no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.” (p. 250)
"É preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Portanto, o kitsch não se interessa pelo insólito, ele fala de imagens-chave, profundamente enraizadas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor
O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no gramado!
A segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de crianças correndo no gramado!
Somente a segunda lágrima faz com que o kitsch seja o kitsch." (p. 253)
Sabina abomina o kitsch, ele é seu único inimigo. Mas não teríamos todos algo que faz nascer as duas lágrimas? Uma lágrima de extremo contentamento, outra lágrima por saber que compartilhamos essa idéia de contentamento com todos os demais. Sim, todos nós temos o kitsch dentro de si, e Sabina também o carrega.
Em diversos momentos do livro, o próprio autor se insere na tentativa de responder as próprias indagações. Ele conhece cada personagem como a palma de sua mão, como se fizessem parte dele – e fazem, ainda que Kundera afirme não se tratar de uma confissão.
Temas:
O casamento, a paternidade e o divórcio (desintegração da família); a fidelidade e a poligamia (privação e direito à liberdade); o sexo insento de sentimentos ou como fuga da alma; a futilidade contemporânea e a alienação política; o individualismo e a massificação de [pré]conceitos.
Mas que blog legal! Estará linkado no Dicas.
ResponderExcluirVoltaremos breve para ler com calma.
Braços!
Toninho Moura
Capitão Ócio
Sempre quis ler esse livro, mas ele sempre andou uns dois passos adiante de mim. Agora certamente ele será o próximo da lista de deveres (deveres com leveza)!
ResponderExcluirÓtima resenha, cheia e complexa como o livro deve ser pra ser teu preferido, Mari. ;)
Lindas ponderações! Parabéns!
ResponderExcluirA marginália exibe uma sabedoria prática que confunde a aristocracia com seu ar de superioridade afetada.
Parabéns pelo blog!
Sergio Viula
Que Blog interessante. Fiquei até com vergonha de postar meu comentário. Sou um leitor assíduo, mas pouco escrevo sobre o que leio.
ResponderExcluirGostei demais do blog.
A todos, parabéns!
Cosme