domingo, 10 de junho de 2012

A arte como ente compartilhado


Creio que em todo período sempre se discutiu o que seria Arte e no nosso não é diferente, essa discussão sempre está dentro da Academia como se tivesse uma fórmula ou conceito que a defina, e isso vem como numa “tradição” e chega até nós como um grande “problema” a ser resolvido. Espero não ser leviano em minhas observações sobre o que é arte e nem espero definir algo; pela liberdade que me concedi na escrita deste texto me sinto à vontade para fazer meus apontamentos a partir da ideia de compartilhamento que vejo presente nos processos de subjetividades, ideia essa que me apoio em Hegel e Agamben para aqui tratar.
Num ensaio intitulado O que é o contemporâneo? Giorgio Agamben ressalta que o verdadeiro homem contemporâneo é aquele que é atravessado pelo passado no presente, ele é deslocado, anacrônico. Para Agamben o presente é o “não-vivido em todo vivido” – prefiro usar o termo “não-vivido no vívido-ido” por ter uma continuidade, não cessa – ou seja, é o mesmo caso em Hegel, caso de justiça com o passado. Este homem atravessado pelo passado no presente, anacrônico, só nos é possível imaginá-lo pensando que ele é um sujeito compartilhado, daí depreender que um homem do século XXI pode ser perfeitamente contemporâneo de outro do século XIX, por exemplo. Ao ler “Iracema”, de José de Alencar, hoje, eu me torno contemporâneo dele porque não faço uma leitura no seu tempo, mas, sobretudo, no meu tempo em sua obra. Não sou nada mais que uma reunião de subjetividades em mim que vêm do passado, mas isto não é herança que recebo do passado, é missão que recebo do passado, missão de justiça que devo fazer, ou tentar, a ele no presente. Sendo assim quando leio Alencar compartilho com ele de suas leituras e de seu tempo e de tempos, períodos, anteriores ao autor, e toda re-leitura é sempre um novo compartilhamento. Percebe-se então que somos todos sujeitos compartilhados que compartilham de alguma forma com o passado e que estamos todos, de alguma forma, unidos por esse compartilhamento.
Se entendermos que o indivíduo, o sujeito, o homem é compartilhado então a Literatura, a Arte também é compartilhada. Quando mergulhamos numa pesquisa sobre a obra de Shakespeare ou Dostoiévski, por exemplo, o que estamos fazendo se não compartilhando com eles e deles? Não estamos por acaso levando o nosso tempo até eles e também modificando o passado? Por acaso tal pesquisador não está compartilhando e resgatando, ou tentando resgatar, no presente o não-vivido?  E se a isto tomo como verdade como posso afirmar que tal coisa hoje não pode receber o nome de Arte se eu a levo também para o passado dito artístico? 
Ao que tudo indica comumente atribuímos como arte o que nos chega do passado e, sobretudo, ao que chamam de cânone ou clássico. Não vou discutir aqui os meios que certos teóricos elencam obras e lhe dão a alcunha do cânon, mas rebater essa hierarquização que faz com que digam que isto é ou não arte. Dizer o que seria arte já pressupõe excluir um ou outro conjunto de produção literária, mas se não podemos dizer o que ela é, podemos ao menos dizer o que ela faz.
Lembro-me de ter lido um texto-palestra de Lima Barreto, O destino da literatura, texto este que nosso mulato de Todos os Santos nunca chegou apresentar, e lá Lima Barreto cita o jovem filósofo francês Jean-Marie Guyau se referindo à arte como “a expressão da vida refletida e consciente, e [que] evoca em nós ao mesmo tempo, a consciência mais profunda da existência, os sentimentos mais elevados, os pensamentos mais sublimes. Ela ergue o homem de sua vida pessoal à vida universal, não só pela sua participação nas ideias e crenças gerais, mas também ainda pelos sentimentos profundamente humanos que exprime". O que o jovem Guyau nos fala é a mesma coisa que Hegel e Agamben também nos diz: a arte é compartilhada.
Tomando essa verdade da arte compartilhada não vejo mais motivos para discussões sobre o que seria arte e muito menos dizer o que não é arte; se sou um sujeito e que reside em mim diversas marcas de processos subjetivos distintos e que estou, a todo o momento, compartilhando desses gostos em comunidade então estamos todos ligados, compartilhados pelas mesmas ideias, atravessados pelo o passado e qualquer produção nessa cadeia será arte para todos, pois negar isso seria negar a própria ideia de compartilhamento e a si, e só não haveria motivos para tal discussão do que é arte se não considerássemos nenhuma produção artística do passado como arte.
Para Hegel a arte é um produto do espírito, por isso o belo artístico ser superior ao belo natural e mesmo “a pior das ideias que perpasse pelo espírito de um homem é melhor e mais elevada do que a mais grandiosa produção da natureza”. Nessas palavras creio que Hegel não define, como requer o conceitualista, o que é arte, mas, antes, ele diz de onde ela vem e o que ela faz: eleva o homem. Sendo assim para entender arte ou o que é arte não é preciso ser um intelectual; se um homem simples do sertão compreende o mundo a partir do seu lugar ele sabe o que é arte, se ele parte do pessoal ao universal ouvindo, por exemplo, notas musicais e ritmo no chocalho do gado no pasto ele sabe o que é arte, este homem simples se elevou sem precisar de nenhum conhecimento técnico de música.
Ao que me parece em Hegel não há discussão sobre o que é arte, nem hierarquização, mas um dizer o que ela faz, e esse dizer em Hegel só é possível porque temos na arte, assim como no homem, um ente compartilhado em comunidade. A arte como ente compartilhado faz com que toda discussão sobre o que não é arte perca o sentido, só é preciso se atentar sobre o que eleva o homem, isso é o que a arte faz e neste sentido a própria história para Hegel é vista como forma de arte.

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