Há pouco mais de um mês, falávamos ao telefone. Ele, entusiasmado, contava-me sobre a viagem que acabara de fazer.
- O mosteiro era tão lindo. Lembrei de você e do seu colégio de freiras - disse ele. - Uma moça loira passou por mim na escadaria e eu quase a chamei pelo seu nome. Engraçado, a gente é sempre um aglomerado de memórias embaçadas. Nem mesmo sei se você ainda é loira.
- Sou sim. Eu também ando projetando você um bocado. Diz um amigo meu, psicólogo, que a isso se dá o nome de transferência. Ou talvez eu tenha confundido a explicação dada por ele, não sei. Mas ando mesmo tentando transferir você pra um corpo mais próximo e menos impossível.
Lembro de ter ouvido um longo suspiro que vinha daquela terra distante através dessa invenção tão útil que é o telefone. De repente, uma ideia me ocorreu: ele estava considerando a possibilidade de voltar. Será? O suspiro morreu e nasceu um longo silêncio, prolongado pela minha ansiedade. Um barulho de quem está prestes a falar e se cala.
- Você ainda está aí?
Outra vez o barulho da quase voz. E a voz:
- Vou ao Brasil ainda este mês, no dia 22 de junho.
Agora o barulho de quase voz era meu, era a minha quase voz. O coração batia tão rápido que era como se nem se movesse. Sabe quando a velocidade chega a um ponto em que a sensação de movimento desaparece? O mesmo acontece quando se sente uma dor muito forte. Eram essas as sensações: ausência de batimentos cardíacos e dormência.
- Você me ouviu? Vou ao Brasil no dia 22 do próximo mês. Você vai me esperar no aeroporto?
Outra vez o barulho da quase voz. E a voz:
- Vou. - uma palavra monossilábica e poderosa.
- Não sei ainda o que farei para faltar ao trabalho. A redação está uma loucura. O primeiro ministro não é um homem muito sensato e mesmo um jornal vagabundo - ainda mais um jornal vagabundo! - não pode perder a oportunidade de escarafunchar cada detalhe.
- Escarafunchar? Você não conversa muito em português.
- Vai ficar censurando meu vocabulário agora?
A brincadeira, a estranha tentativa de esquecer a ausência de batimentos cardíacos e a dormência, não durou muito.
- Tenho tanta coisa pra te falar quando eu chegar.
- Eu sei, porque também tenho muito a dizer. Ficarei doente e faltarei ao trabalho. Terei uns três dias livres.
- Só ficarei por dois dias.
- Precisarei mesmo de um dia extra pra absorver tudo. Não será fácil te ver depois de quase dois anos.
Desligamos. Passei aquela noite em claro, a seguinte também. Preenchi meu tempo com coisas úteis, tentei não pensar muito. O número de clientes do escritório aumentou bastante, o que serviu bem para espantar os pensamentos.
Mas hoje, dia 22 de junho, precisei tomar muito café. Acordei - levantei, porque nem sequer dormi -, tomei um banho demorado, apesar do frio, escovei os dentes, tomei quatro xícaras de café e um pão com queijo, escovei os dentes novamente, vesti um vestido florido e peguei um táxi até o aeroporto.
Aqui estou, na praça de alimentação, computador aberto no colo, e acabo de perceber que o vestido está um pouco amarrotado. Cheguei cedo, previ que precisaria de tempo para escrever alguma coisa. Uma moça grávida passa, imagino se um dia serei eu a carregar um ser humano dentro de mim. É um pensamento recorrente.
Lembro que R. nunca quis fazer planos. Era sempre a mesma conversa de 'não-sei-vamos-ver'. Não vou esperá-lo no saguão, vou esperá-lo bem aqui. Por quê? Porque quero casar, ser mãe, envelhecer ao lado de alguém. Se ele não puder me achar por esforço próprio, que volte à Itália sem mim.
Tão vívido esse universo, Mari. Senti a água gelada, os cafés, a ansiedade ao telefone... E no final, a decisão! Essas palavras vão viver em mim durante pelo menos um dia inteiro.
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