segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Descortinando o palco das memórias

A rua em que moro não é a mesma rua que cresci, embora eu nunca tenha me mudado. Não é apenas pela mudança na fachada das casas, na presença do asfalto, ou mesmo na mudança dos rostos dos vizinhos. A maioria deles, na verdade, continuam os mesmos, com exceção do que se foram, mas não, não é a mesma rua.

Na verdade ainda não era exatamente uma rua, mas uma extensão de mato entre as casas que ficavam a sua margem e, em dias de chuva, viravam enormes poços de lama que os vizinhos transpunham de um lado para o outro jogando tijolos e pedras. Não havia saneamento. Não havia transporte. Andava-se três ou quatro quarteirões pra se pegar um ônibus. Por isso quando falo da rua da minha infância não guardo saudosismos, apenas falo de uma constatação, afirmo um fato, algo que aconteceu indiferente ao meu próprio sentimento a respeito.

Mas continuando... do que mais me lembro da rua da minha infância eram das noites. Se me pego lembrando, me vejo sempre entre quatro ou cinco anos, aprendendo cantigas de roda: mãos dadas em círculos, girando e cantando coisas das quais eu não tinha idéia do sentindo que tinham. Afinal por que alguém vai "atirar o pau no gato"? Ou por que a "dona crioula que vem da Bahia, pega as crianças e joga elas na bacia"? Outra imagem que sempre vem é aos nove ou dez anos, correndo, correndo, correndo... sempre correndo.

Mas se tem uma imagem que eu sempre guardo com um sentimento especial da rua da minha infância é a mais remota. Quando tvs e telefones (mesmo telefones públicos) eram raridade. Caía a noite e as pessoas ficavam nas janelas das casas dos vizinhos assistindo novela.

A casa da minha avó era uma das poucas casas da minha rua que tinha tv e tv em preto e branco. Anoitecia e estávamos, minha mãe, meus dois irmãos e eu sentados no chão da sala da minha avó, cercados por um monte de vizinhos curiosos. Eram sempre duas novelas seguidas no início da noite, depois vinha o jornal. Nessa hora, as pessoas se dispersavam. As crianças brincavam. As donas de casa esquentavam o feijão da janta e logo mandavam as crianças entrar, porque queriam jantar antes de começar a novela das oito.

O engraçado é que essas recordações parecem ser de um homem da época do início da tv, ou então crônicas de um garoto de interior, mas não, isso tem uns vinte e quatro ou vinte três anos. Final da década de oitenta. Aqui na cidade mesmo. O caso é que, como em todos os subúrbios, vive-se quase isolado do mundo. Não a toa muitos dos bairros da cidade eram campos de concentração que a prefeitura de Fortaleza construía pra que os flagelados não ficassem no centro, que era a zona mais nobre da cidade.

Haviam também aqueles que preferiam outro tipo de novela: a da vida alheia. Esses permanecem até hoje, claro. Juntavam-se as cadeiras nas calçadas e em frente a porta das casas, as fofoqueiras afiavam o fio das suas línguas nas conversas cotidianas.

Mas assim que a imagem me vem a mente eu abro os olhos, e aqui de onde estou olho a rua do presente. O barulho dos carros e dos ônibus, as pessoas escondidas dentro de casa. A minha sobrinha cresce dentro de casa e ninguém nem sonha em deixar ela brincando em frente de casa devido aos assaltos que acontecem, mesmo aqui na porta de casa, perto da parada de ônibus. Não que ela não tenha amigos da mesma idade, mas estes amigos não moram ao lado dela.

Involuntariamente ela aprendeu a brincar sozinha e a falar como adulto para se comunicar com os adultos que povoam seu mundo doméstico. Ela vai crescer sem conhecer os outros garotos e garotas que moram tão próximo e só vai ter oportunidade de brincar na escola, em algum clube ou em qualquer outro lugar menos no lugar onde ela mora.

Não tenho saudosismos da rua que cresci, ela se foi e com ela se foram muitos anos difíceis. Só queria que ela tivesse deixado para as crianças de hoje a convivência entre as pessoas e o prazer de crescer ao lado das pessoas com que você mora.

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